segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Encontro

O barco zarpou. Primeira experiência dela: dia morno, quase sem movimento. O sol convidando à preguiça.

Ela não podia ter imaginado. A cada surpresa da vida, uma rápida acomodação: o mar já a sabia e ela o acolheu. Uma música por debaixo das ondas só era ouvida entre eles, chamamento. Prazer por debaixo da pele escondida.

Dentro uma conexão de vozes. O mundo de sempre. A alegria do mundo, num passeio a barco. Ela se desapercebeu. Não se pode ser só, onde se tem iguais.

A solidão, por falar nisso, era o convite daquela linha plana e infinita de águas. Enfim, o passeio.

O barco se distanciou da terra. Ela ali, na ponta, no ínfimo pedaço da fronte. Chamavam do outro lado, o que se alargava. Finalmente fora seu eco o ouvido. Aquele com o qual estava tão acostumada, que bateu em forma de respingo. Finalmente conheceram a ponta. Mão postas sobre o gradil da proa. Estupefatos.

No diálogo marítimo, a incompreensão do mar. Pulou, com ouvidos atentos, o rapaz que bebia uma taça de vinho. Pés descalços e peito nu. O peixe-humano desenhou o arco umbilical do barco-mar, sob os olhos paralisados dos que ficaram.

As bolhas bruscas do peso de seu corpo sobrepuseram-se às dela. Sereia. Ele, de pernas em movimento, extasiou-se. Lembrou-se das falas alucinadas e obscuras, sob céus plenos, noites amenas e dias agitados. Ela sempre à meia-luz. Astro animado e imortal. Tão secreta, tão dentro de um mundo inadentrável.

No infinitesimal momento daquele quadro móvel, lembrou-se dos escritos. Leria todos novamente. Com os olhos do realizado. Mas o quadro já se ia. Ficaria ao sabor daquela galeria profunda, êxtase dos escolhidos. Mãos mais leves do que nunca, como se se apoiassem num encosto de águas; sorriso nos lábios. Impressionante. Alguns peixes já se mesclavam às algas móveis de seus cabelos. Tão lívida. Se pudesse sentir o salgado das próprias lágrimas, talvez não se entristecesse tanto. Sentiria saudades daquela que não a pertencia, nem a ninguém. A calda dos pés: cadáver, desmaio, para sereia viva.

Subiu. Do barco, o susto da tona rompida: chegada brusca. Olhos sempre espantados, desde sempre. Morreu. Ele não se encorajou. Aquela glória era só dela, a deusa que voltava pra casa: um reino qualquer fora de seu alcance. Não teria sido o mesmo. Sua morte: uma espera tranqüila sob o conforto de mãos familiares. E, talvez, na película inescapável, um quadro eterno.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Lúcia, coincidência

Lúcia, a Lucíola, de um país do oeste.
Beleza, sutileza, juventude, frescor. Como juntar todas essas palavras em uma só? Como formar a poesia? Se ela vem, pronta, em forma de movimentos graciosos, femininos; em forma de segredo nos olhos pequenos e redondos? Quem colocou esse sorriso contido, se a alma toda explode em delírios de riso?

Parece que na taça, o vinho em minha frente, uns fios de cabelo se movimentam, tão finos e ondulados, o paradoxo da graça.

Uma moça sorri, no auge dos seus vinte anos, num salão enorme, com pessoas-estátua; tudo se congela, para que a dançarina se movimente, como se bela se soubesse. Vê-se em seus olhos: sabe-se mesmo e é só, com seus movimentos perfeitos, a eslava no movimento latino-salsa.

Amor etéreo e secreto por uma ninfa, vindo de uma quase-não-mais-ninfa. Secreto até pra mim, o corpo ainda se cala, não ouviu. A alma sim, se debate, num crescendo contínuo.

Tua alma cigana, Lucíola, eu a amo; de alma cigana para alma cigana...