quinta-feira, 19 de julho de 2007

Pianissimo

Sim, meus olhos transparecem mais, mas é uma fina lâmina de ilusão, uma cortina de águas, que só embaraçam mais. Nem eu entendo esse amor louco e irracional que despeja esse mar na retina. Quer enganar apenas, turvar.

E como um vasilhame transbordante, meu corpo pulsa, se debate por dentro, grita. Só de encontrar tua transparência, a tua maré-baixa, tua serenidade.

E o bicho alucinado que mora nestes dois globos turvos diminui, se apequena, teme, treme, e desce tão instintiva e animalescamente, que eu paraliso. Me perco. Perco o fio da meada. E só volto quando você volta, olhando furtivamente para trás, para o meu eu que se agiganta ao longe.




segunda-feira, 2 de julho de 2007

Infância

Quem a vê todos os dias sentada naquela varanda esquecida? Somente os resquícios daquela paisagem saudosista. Jabuticabeira, uma velha tábua de lavar roupa, o cheiro do picumã, uma panela de sopa sendo feita a uma quadra dali, alguns pássaros velhos, um rastro de formigas e folhas.

Todos os meses o sagrado aluguel do quarto embaixo do açucareiro, o mesmo açucareiro que a mãe da dona da casa usava para os seus. Nunca deixou de pagar por aquele canto apagado. Um quartinho escuro, cuja entrada, pequena, se dava pela porta da cozinha. Uma veneziana de alumínio, modismo da cidade já há algumas décadas. Os beirais empoeirados, um guarda-roupa de madeira de lei, mas não tão charmoso. Uma cama de ferro, um altar, pequeno altar e uma santa de louça. Embaixo da cama uma vida silenciosa, caixas e caixas, poeiras e apagamentos. E, todos os dias, parte do mobiliário, uma senhora que se deita às nove e reza, murmurando, até às nove e meia. De manhã levanta e rasteja até o banheiro dos fundos, depois à varanda.

Naquele dia, especificamente, ficou até às nove e cinco olhando a mesma árvore, até que uma criança desceu lá de cima e lhe deu boa noite. Arrastada pela minúscula força que ainda a mantinha como ser vivo, a senhora seguiu-a e nem estranhou o fato de a pequena entrar em seu quarto, que nunca tinha sido visitado. Estranhou-a mais o fato daquela criança não se incomodar com a penumbra e respirar muito familiarizadamente aquela poeira. Olhou insossa para a santa e, talvez, pensou a senhora, soubesse muito bem como era ser de louça. Entrou embaixo da cama, sem dar conta das pernas estáticas e idosas que, junto com o olhar fixo, acompanhavam os movimentos pueris.

A criança era uma menina, mas bem poderia ser uma boneca, um menino, uma estátua. Não era nada, na verdade. Nunca fora senão um conjunto anatômico que se guiava pelo que deveria se guiar. Mas era uma criança e tinha de si a agilidade. Entrou debaixo da cama. Aos poucos, todas as caixas foram retiradas. Não se pode falar que tipo de caixa, pois a luz ainda estava apagada e, talvez, tais caixas nem existissem mais. Nem o que de dentro delas saía, um punhado de crochê, alguns bilhetes, folhetos, um pedaço de jornal com os últimos falecimentos de uma época qualquer.

A criança, bem se podia perceber, lia. Não muito rápido, mas lia. E, pelo olhar inalterado, não se podia esperar de toda aquela vastidão um bilhete mais interessante, um segredo, uma travessura, um amor perdido, qualquer coisa além. Mas também não desanimou, se outrora não se animou. Arrastou-se até outra caixa, e outra, e uma mais ao fundo. Apenas lhe chamou atenção o nome de uma loja, tão berrante, tão colorido, tão presente. “Fabela”. Uma coisa estranha aconteceu. A menina ergue as sobrancelhas. Um ânimo, uma pequena emoção. Terá sido onde a senhora comprou o vestido de noiva? Imaginou-a se vestindo, os pés esticando como que já sendo beijados por aquele que a levaria a outros sonhos ainda não sonhados. Um refresco, o interior nunca teve um calor muito fácil. A mãe pagaria aquela peça com o que lhe restara das últimas jornadas.

Não. Era uma loja muito pior. Quando ia à padaria, passava por ali e espiava as donas mal-vistas da cidade comprando, comprando, deliciando-se, o prazer que custa caro. A loja seria tão exuberante quanto a caixa em que colocava as mercadorias. Teria as portas coloridas, umas luzes de canto, uns quadros voluptuosos. Um senhora bonita de olhar inflamado. Jamais a mãe poderia suspeitar. Mas não. A senhora não teria uma caixa de uma loja assim. Seria uma loja de linhas, onde saíam todas as suas peças de crochê. Toda sua casa deveria ser de crochê. Sua alma inclusive. Todos os cômodos, todos os cantos, tudo deveria ser enovelado, feito sob muita precisão.

No tempo em que a loja tinha feito aquela caixa, deveriam ter saído as primeiras linhas rosa-choque. As amarelo-ouro, as verde-limão. E ela não teria gostado e nem voltado nunca mais lá, pois só havia uma caixa. Nenhuma mais.

De repente a caixa foi se iluminando. A criança, que saiu subitamente de seus devaneios, percebeu que a senhora abria a janela. O pó a sufocara. E a pequena enxergou, num cantinho sem cor da caixa, alguns escritos: “para Pedro, do vovô Pereira”. Sem mais, a senhora lembrou-se dos Pereira, para quem trabalhara anos a fio. E lembrou de não ter visto mais o açucareiro, deixaria o aluguel no parapeito da janela. No interior, os parapeitos das janelas são muito grandes, pois como se imaginaria os vasos de violeta, ou a caixinha de fósforo ou a chaleira? Os Pereira não estavam mais lá, nem nada do que se pudesse lembrar deles. Não havia mais nada naquele lugar.