sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Mãe de Mundos

Era pequena e pobre, traços bugres que o denunciavam. E não sabia ainda de sua origem nobre. Levou muito tempo até saber. Se não lhe custou outra vida...


As brincadeiras singelas apressavam seus dias, entre um dever e outro de adulto. Deveres que lhe pesavam o fardo e apagavam a infância da memória.


Tinha os olhos puxados. Semelhança clara e divisão tênue com uma raça do outro lado do mundo. Dizia a História dos homens serem elas de mesma origem.


Não tardou que lhe viesse o curso comum de uma jovem como ela. O start é sempre depois da infância. E mesmo que a infância tenha sempre cara de infância, o curso comum era muito mais comum a infinitas culturas, enquanto a infância tinha sempre infinitas cores para cada indivíduo.


Tinha o dom do canto, que vinha também de outras fontes que banhavam as veias-correntes de seu sangue. Metrópole e colônia se mesclavam naquele talento, ainda que a bugrazinha não tivesse nunca se libertado do jugo.


O fato começou quando o tesouro em flor, ainda a ser desvendado, logo se viu engolido pelas pequenas ordenanças diárias e com a incumbência de gerar e prosseguir outras vidas, como nunca a sua.


Seriam os sulcos da pele ainda resquícios de um rio em curso? Ou ali pousavam apenas barcos alheios, a fim de transportarem pra lá e pra cá, mas sempre adiante, destinos mais sagazes?


Se não tinha a coragem de uma amazona, era a imagem de uma Ana Terra que figurava muitas vezes aos olhos atentos do espectador solitário. Para recordar e sofrer o tempo, vazio de si mesma, os olhos se rejuvenesciam, ainda um laço de esperança.


Para o mesmo espectador, companheiro e solidário anônimo, havia uma beleza inexplorada na vulgaridade dos dias daquela mulher: uma estrela de comunidades, apenas. A voz continuava brilhando, satisfazia pequenos círculos de rostos sem nomes, incapazes de perceber a fundo a alma de sua canora. Cada peça de roupa ao sol, um cheiro de amaciante, produto que usava há uma década, o máximo; uma panela de pressão, dedicatória empírica a um membro da família: atos e gestos tão brancos quanto seu talento para a limpeza, tão brancos quanto tudo o que tem de ser passado em branco.


O furor de seu sofrimento particular tinha, acima de tudo isso, o peculiar do refinamento. Era na genética que tudo se mantinha na lógica da sua infelicidade. Império da sua infelicidade. Nos olhos de cada um de sua tripulação, o apagamento da bugrice. Era quase uma nova raça, quase uma libertação histórica, não a força e a dominação da metrópole, mas a dor da sujeição colona. Eram olhares comuns, em pontos comuns de desespero, infelicidades muitas vezes sem explicação, sem marca, dentro só da teia invisível de seus códigos genéticos.


Morreu certamente sem saber de si. Isto nunca se prevê. Se a morte cura, talvez para o possuidor dela; para os que ficam, o mais terrível da condição: de tê-la sempre para lembrar.


Se nobre, não há que duvidar, ou teria morrido no anonimato.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Encontro

O barco zarpou. Primeira experiência dela: dia morno, quase sem movimento. O sol convidando à preguiça.

Ela não podia ter imaginado. A cada surpresa da vida, uma rápida acomodação: o mar já a sabia e ela o acolheu. Uma música por debaixo das ondas só era ouvida entre eles, chamamento. Prazer por debaixo da pele escondida.

Dentro uma conexão de vozes. O mundo de sempre. A alegria do mundo, num passeio a barco. Ela se desapercebeu. Não se pode ser só, onde se tem iguais.

A solidão, por falar nisso, era o convite daquela linha plana e infinita de águas. Enfim, o passeio.

O barco se distanciou da terra. Ela ali, na ponta, no ínfimo pedaço da fronte. Chamavam do outro lado, o que se alargava. Finalmente fora seu eco o ouvido. Aquele com o qual estava tão acostumada, que bateu em forma de respingo. Finalmente conheceram a ponta. Mão postas sobre o gradil da proa. Estupefatos.

No diálogo marítimo, a incompreensão do mar. Pulou, com ouvidos atentos, o rapaz que bebia uma taça de vinho. Pés descalços e peito nu. O peixe-humano desenhou o arco umbilical do barco-mar, sob os olhos paralisados dos que ficaram.

As bolhas bruscas do peso de seu corpo sobrepuseram-se às dela. Sereia. Ele, de pernas em movimento, extasiou-se. Lembrou-se das falas alucinadas e obscuras, sob céus plenos, noites amenas e dias agitados. Ela sempre à meia-luz. Astro animado e imortal. Tão secreta, tão dentro de um mundo inadentrável.

No infinitesimal momento daquele quadro móvel, lembrou-se dos escritos. Leria todos novamente. Com os olhos do realizado. Mas o quadro já se ia. Ficaria ao sabor daquela galeria profunda, êxtase dos escolhidos. Mãos mais leves do que nunca, como se se apoiassem num encosto de águas; sorriso nos lábios. Impressionante. Alguns peixes já se mesclavam às algas móveis de seus cabelos. Tão lívida. Se pudesse sentir o salgado das próprias lágrimas, talvez não se entristecesse tanto. Sentiria saudades daquela que não a pertencia, nem a ninguém. A calda dos pés: cadáver, desmaio, para sereia viva.

Subiu. Do barco, o susto da tona rompida: chegada brusca. Olhos sempre espantados, desde sempre. Morreu. Ele não se encorajou. Aquela glória era só dela, a deusa que voltava pra casa: um reino qualquer fora de seu alcance. Não teria sido o mesmo. Sua morte: uma espera tranqüila sob o conforto de mãos familiares. E, talvez, na película inescapável, um quadro eterno.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Lúcia, coincidência

Lúcia, a Lucíola, de um país do oeste.
Beleza, sutileza, juventude, frescor. Como juntar todas essas palavras em uma só? Como formar a poesia? Se ela vem, pronta, em forma de movimentos graciosos, femininos; em forma de segredo nos olhos pequenos e redondos? Quem colocou esse sorriso contido, se a alma toda explode em delírios de riso?

Parece que na taça, o vinho em minha frente, uns fios de cabelo se movimentam, tão finos e ondulados, o paradoxo da graça.

Uma moça sorri, no auge dos seus vinte anos, num salão enorme, com pessoas-estátua; tudo se congela, para que a dançarina se movimente, como se bela se soubesse. Vê-se em seus olhos: sabe-se mesmo e é só, com seus movimentos perfeitos, a eslava no movimento latino-salsa.

Amor etéreo e secreto por uma ninfa, vindo de uma quase-não-mais-ninfa. Secreto até pra mim, o corpo ainda se cala, não ouviu. A alma sim, se debate, num crescendo contínuo.

Tua alma cigana, Lucíola, eu a amo; de alma cigana para alma cigana...

sábado, 8 de setembro de 2007

Num outro mundo

Clementine está ausente. Com a devida permissão, invado seu espaço...

NUM OUTRO MUNDO

O céu é um tabuleiro de xadrez. Gigantescas peças de mármore branco e preto (verde e bege ao entardecer) descansam placidamente imóveis de cabeça para baixo. Os pacotes de leite sobrevoam as árvores, parando aqui e ali para amamentar os filhotinhos-yakult nos ninhos de néon azul.


Dentro dos carros os cães dirigem em direção ao trabalho, as rodas dos autos girando no vazio sobre o teto enquanto o aço fagulha no chão de ferro preto que serve de estrada. Fumando seus cigarros de menta, braços apoiados com o cotovelo para fora da janela do carro, vira-latas ajeitam o chapéu, soltam a fumaça furta-cor e piscam seus olhos pretos para as poodles cor-de-rosa que passam pedalando bicicletas de asas prateadas.

Em cada esquina, o entroncamento em forma de oito mais quinze das ruas escuras acumula a sujeira da cidade: cabelos cortados, fraldas usadas, unhas, meias furadas, tudo se acumula em frente a bueiros que aspiram a água para cima. Quando o rio passa por ali, por acaso, em seu passeio de helicóptero, acaba arrastando tudo para a periferia onde gordas pessoas brancas separam o que se recicla (areia sanitária, restos de ração, coleiras quase novas, tudo se aproveita). No lixão, terno-e-gravata Armani e tênis Nike disputam a comida com rubras caixinhas do McDonalds e esculturais garrafas de vidro Coca-cola.

No centro comercial, onde os pássaros se encontram para discutir ufologia e psicanálise em aconchegantes cafés-com-leite, as flanelinhas alaranjadas se oferecem para polir os bicos em troca de um alvejantezinho qualquer, que porventura esteja sobrando em algum bolso sob a asa dos nobres pombos-correio-eletrônico. Pequenos spams andarilham tentando furtar algum desavisado.

Dentro dos táxis à espera dos clientes, os gatos penteiam os bigodes, brincam com alguma bolinha de papel, lambem-se entre as pernas, mordiscam pipoca ou ração da banquinha da praça. Quando chega alguém atrasado, apressado, fecham o envelope, colam o selo e partem em alta velocidade em direção à rua tal número tal.

Por trás dos portões de ferro em brasa das casas de tijolos-de-bala-de-menta, com os olhos desejosos de liberdade, choramingando enquanto olham os cães na rua, as pessoas se assentam sobre as patas traseiras abanando os bolsos da calça jeans. Esperam ansiosas os seus donos para lhes trazer um DVD quadrado ao molho branco, um mimo, um pequeno presente ao fim do dia. Quando muito, ganham um afago, um pequeno tapinha das patas de unhas pretas dos dober-man de chapéu.

Ao fim da noite, todos acendem as luzes e vão dormir.

Postado por Spotless Mind

quinta-feira, 19 de julho de 2007

Pianissimo

Sim, meus olhos transparecem mais, mas é uma fina lâmina de ilusão, uma cortina de águas, que só embaraçam mais. Nem eu entendo esse amor louco e irracional que despeja esse mar na retina. Quer enganar apenas, turvar.

E como um vasilhame transbordante, meu corpo pulsa, se debate por dentro, grita. Só de encontrar tua transparência, a tua maré-baixa, tua serenidade.

E o bicho alucinado que mora nestes dois globos turvos diminui, se apequena, teme, treme, e desce tão instintiva e animalescamente, que eu paraliso. Me perco. Perco o fio da meada. E só volto quando você volta, olhando furtivamente para trás, para o meu eu que se agiganta ao longe.




segunda-feira, 2 de julho de 2007

Infância

Quem a vê todos os dias sentada naquela varanda esquecida? Somente os resquícios daquela paisagem saudosista. Jabuticabeira, uma velha tábua de lavar roupa, o cheiro do picumã, uma panela de sopa sendo feita a uma quadra dali, alguns pássaros velhos, um rastro de formigas e folhas.

Todos os meses o sagrado aluguel do quarto embaixo do açucareiro, o mesmo açucareiro que a mãe da dona da casa usava para os seus. Nunca deixou de pagar por aquele canto apagado. Um quartinho escuro, cuja entrada, pequena, se dava pela porta da cozinha. Uma veneziana de alumínio, modismo da cidade já há algumas décadas. Os beirais empoeirados, um guarda-roupa de madeira de lei, mas não tão charmoso. Uma cama de ferro, um altar, pequeno altar e uma santa de louça. Embaixo da cama uma vida silenciosa, caixas e caixas, poeiras e apagamentos. E, todos os dias, parte do mobiliário, uma senhora que se deita às nove e reza, murmurando, até às nove e meia. De manhã levanta e rasteja até o banheiro dos fundos, depois à varanda.

Naquele dia, especificamente, ficou até às nove e cinco olhando a mesma árvore, até que uma criança desceu lá de cima e lhe deu boa noite. Arrastada pela minúscula força que ainda a mantinha como ser vivo, a senhora seguiu-a e nem estranhou o fato de a pequena entrar em seu quarto, que nunca tinha sido visitado. Estranhou-a mais o fato daquela criança não se incomodar com a penumbra e respirar muito familiarizadamente aquela poeira. Olhou insossa para a santa e, talvez, pensou a senhora, soubesse muito bem como era ser de louça. Entrou embaixo da cama, sem dar conta das pernas estáticas e idosas que, junto com o olhar fixo, acompanhavam os movimentos pueris.

A criança era uma menina, mas bem poderia ser uma boneca, um menino, uma estátua. Não era nada, na verdade. Nunca fora senão um conjunto anatômico que se guiava pelo que deveria se guiar. Mas era uma criança e tinha de si a agilidade. Entrou debaixo da cama. Aos poucos, todas as caixas foram retiradas. Não se pode falar que tipo de caixa, pois a luz ainda estava apagada e, talvez, tais caixas nem existissem mais. Nem o que de dentro delas saía, um punhado de crochê, alguns bilhetes, folhetos, um pedaço de jornal com os últimos falecimentos de uma época qualquer.

A criança, bem se podia perceber, lia. Não muito rápido, mas lia. E, pelo olhar inalterado, não se podia esperar de toda aquela vastidão um bilhete mais interessante, um segredo, uma travessura, um amor perdido, qualquer coisa além. Mas também não desanimou, se outrora não se animou. Arrastou-se até outra caixa, e outra, e uma mais ao fundo. Apenas lhe chamou atenção o nome de uma loja, tão berrante, tão colorido, tão presente. “Fabela”. Uma coisa estranha aconteceu. A menina ergue as sobrancelhas. Um ânimo, uma pequena emoção. Terá sido onde a senhora comprou o vestido de noiva? Imaginou-a se vestindo, os pés esticando como que já sendo beijados por aquele que a levaria a outros sonhos ainda não sonhados. Um refresco, o interior nunca teve um calor muito fácil. A mãe pagaria aquela peça com o que lhe restara das últimas jornadas.

Não. Era uma loja muito pior. Quando ia à padaria, passava por ali e espiava as donas mal-vistas da cidade comprando, comprando, deliciando-se, o prazer que custa caro. A loja seria tão exuberante quanto a caixa em que colocava as mercadorias. Teria as portas coloridas, umas luzes de canto, uns quadros voluptuosos. Um senhora bonita de olhar inflamado. Jamais a mãe poderia suspeitar. Mas não. A senhora não teria uma caixa de uma loja assim. Seria uma loja de linhas, onde saíam todas as suas peças de crochê. Toda sua casa deveria ser de crochê. Sua alma inclusive. Todos os cômodos, todos os cantos, tudo deveria ser enovelado, feito sob muita precisão.

No tempo em que a loja tinha feito aquela caixa, deveriam ter saído as primeiras linhas rosa-choque. As amarelo-ouro, as verde-limão. E ela não teria gostado e nem voltado nunca mais lá, pois só havia uma caixa. Nenhuma mais.

De repente a caixa foi se iluminando. A criança, que saiu subitamente de seus devaneios, percebeu que a senhora abria a janela. O pó a sufocara. E a pequena enxergou, num cantinho sem cor da caixa, alguns escritos: “para Pedro, do vovô Pereira”. Sem mais, a senhora lembrou-se dos Pereira, para quem trabalhara anos a fio. E lembrou de não ter visto mais o açucareiro, deixaria o aluguel no parapeito da janela. No interior, os parapeitos das janelas são muito grandes, pois como se imaginaria os vasos de violeta, ou a caixinha de fósforo ou a chaleira? Os Pereira não estavam mais lá, nem nada do que se pudesse lembrar deles. Não havia mais nada naquele lugar.

domingo, 24 de junho de 2007

Solidão


Tão só. Tão só eu. Nesse côncavo escuro e silencioso. Só algumas ondas de som retumbando de fora. Amor: só se par da incompreensão.


Só, é sempre a condição. Nas várias telas do observatório: big brother de mim, me vigiando. De mim, só a chuva de vendas sobre outrem. Só, sempre o só.


A Morte, à espreita, com seus vidrinhos tilintantes e um a dose única na mão, pede licença sob o calor escaldante de fora da humanidade. Eu tilinto só os dentes, não deixo entrar, ainda. Só se for ela, só, e seu machado, Machado de Assis.