terça-feira, 15 de maio de 2007

Casa Abandonada

Não se trata de sótão, nem de porão. É na sala de estar, na cozinha, nos corredores, até nos labirintos. Tudo abertamente. Percorro, com todas as feridas à mostra, os cômodos dessa casa, dessa casa que me inibe e apavora, que muito pouco amo, que mais minhas entranhas devora.

Eu percorro nua, de pés ralados e pregos no chão, cada pedaço, cada vão. Meu grito sufocado só faz quebrar os vidros, ninguém me ouve de fato, só os cachorros, os gatos, todos ninguém como eu.

Há muito perdi a vergonha, ou o pudor. Meus seios desnudos, ou a genitália. Meu colo, meu ventre, meu dorso, tudo desnudo, como se eu mesma as vestes arrancasse.

Foram todos os tecidos, um por um, arrancados pelas ferpas, pelos arames, por tudo que é cortante. Me levaram até as vestes íntimas, me levaram até os fios dos cabelos. Me devoraram, e eu ainda estou aqui, não levaram os restos, mastigados.

Alguns abutres me cercam, eu me escondo na casa, nessa casa abandonada, onde nasci, cresci e morro, a cada instante. Atribuem-me insanidade, tudo de leviano e aqui me deixaram. Comigo não falam, nem vestem, nem resvalam.

Ouço barulho na cozinha. A torneira aberta, alguém lavando louça, algumas vozes, cheiro de comida. Ouço passos até a sala, uma TV, um chuveiro, do outro lado. Na parede, colocaram espelho, no chão, no teto, por onde eu passo.

A casa abandonada, de um arquiteto louco, um pedreiro desvairado, as mãos divinas imprudentes. Não se vêem mais gatos no telhado, nem miragem. A luz do poste, um foco: a casa é um palco, as marionetes fugiram, nem os atores sobraram.